domingo, 30 de março de 2014

O diário do meu primeiro Trekking (Dia 2)




12/10/2013

5.00h da manhã. “Maria estás acordada? Preciso de ajuda para me levantar!”. Acordei desorientada, mas o fato de todos os meus músculos latejarem ao menor movimento, trouxe-me de volta à realidade. Não consegui descobrir um centímetro do meu corpo que não me doesse. Colocar a mochila às costas quase me derrubou tal era a dor que tinha nas ancas. Sim, hematomas roxinhos e bem dolorosos. Com bastante dificuldade arrumei as minhas coisas e saí para a pequena praça quase deserta no dia anterior.


Deveria ser dia de mercado porque havia uma concentração anormal de pessoas à volta de quatro bancas. Não me demorei porque estava esfomeada, a precisar de um pequeno-almoço nutritivo para superar outros tantos quilómetros que me esperavam nesse dia. Estava a pensar nisso enquanto me dirigia ao comedouro, termo que designa uma casa local que serve refeições. Não me posso queixar porque o meu pedido foi acedido, mas nunca pensei comer ovos, arroz, feijão preto e tortilhas àquela hora da manhã.


Deixamos a aldeia de Ixtahuacan pouco depois de terminarmos o pequeno-almoço e continuamos a nossa descida pelo vale de Nahua.


Por duas ou três vezes, vislumbramos pequenas casas isoladas, não o suficiente para formar uma aldeia e praticamente inacessíveis no meio de montanhas cultivadas com enormes espigas de milho.


Uma parte do percurso interrompia estes campos e senti-me como as crianças do filme “Querida, encolhi os miúdos”. Espigas de milho com mais de três metros de altura e pedaços de céu azul foram o meu cenário durante uma parte do trilho. Os guias atribuem a altura anormal dos pés de milho a uma técnica maia bastante antiga usada pelos locais (se funciona ou não, não sei, mas gostaria de a experimentar na minha horta) com base na suposta simbiose que ocorre quando se planta junto a este um pé de feijão.




Atingimos a base do vale e descansamos na margem de um rio enquanto nos mentalizávamos para a próxima etapa do nosso trekking. Olhava para a outra margem onde se encontrava a “Record Hill”, a primeira subida deste dia e provavelmente a mais difícil de todo o percurso.


Como o nome indica, os mais corajosos tentam bater o record atual de 9 minutos e 3 segundos. Não tentei cronometrar o meu tempo, fui com calma a apreciar a vista, mas várias pessoas fizeram-no. Como seria de esperar, ninguém conseguiu batê-lo.


Quando cheguei ao topo da colina desejei ter uns pulmões suplentes para o resto do dia. Apesar de ofegante e dorida, consegui apreciar a recompensa. Uma vista que nos faz prolongar o olhar sobre um vale tao verde, apenas pontuado com pequenas casas, um descanso de 20 minutos e a promessa de um gelado um pouco mais à frente deram-me energia para continuar.


Rapidamente chegamos a Xecabol, uma pequena povoação com muitas crianças que gritam, riem e apontam para as pessoas estranhas que carregam mochilas enormes e duas vezes por semana passam por eles.


O dia a dia dos seus habitantes é algo que temos o privilégio de ver de perto. Mulheres que lavam os cabelos em bacias de água fria junto à estrada, crianças  que brincam nas traseiras das casas e homens que trabalham o campo fazem parte da imagem da aldeia.


A única mercearia, para além de refrescos e snacks, também vende gelados por poucos cêntimos, e são os únicos extras não incluídos no trekking. Com menos de 1€ comi dois dos mais caros e maiores.


Atravessamos a aldeia e fizemos um piquenique um pouco mais adiante, antes de penetrarmos pela última vez na floresta, numa íngreme e complicada descida até ao rio Payatza. Esta foi, para mim, a fase mais difícil. Com os músculos a fraquejar, por diversas vezes senti os meus joelhos a ceder ao peso que transportavam, adicionada a força que é necessária para travar o corpo para não irmos simplesmente a rolar até ao rio.
Ladeando as montanhas, para além da vista magnífica da floresta também vemos campos cultivados e simétricos a perder de vista e palmeiras com as folhas mais longas que alguma vez vi.


Chegados ao rio estava na altura de calçarmos o segundo par de sapatilhas porque nas horas seguintes iriamos atravessar a pé sete pequenos riachos. A sensação é maravilhosa: os pés, com feridas e bolhas e muitas dores, em contato com a água gelada e límpida. A vontade é não continuar e ficar de molho no riacho por várias horas. Mas anoitece muito cedo e tínhamos que chegar a casa de Don Pedro, o nosso anfitrião, antes das 18 horas.


5h da tarde. Fui a primeira a chegar a Xiprian, a aldeia onde iriamos pernoitar. Uma vez que a casa de Don Pedro só tinha uma casa de banho, queria tomar o tão desejado banho de água fria antes que anoitecesse, ou de outra forma iria congelar. Então, antes da maioria das pessoas ter recuperado o fôlego já estava eu a sentir-me como nova, com roupa quente e lavada.


O Don Pedro, por uma quantia que desconheço, dá-nos um teto para dormir, sumos de frutas, prepara-nos um delicioso jantar e faz-nos uma fogueira para nos aquecermos enquanto assamos marshmallows. É um senhor simpático e conversador, principalmente quando descobriu que eu e a Maria falávamos a sua língua (a Maria, porque eu mantenho-me fiel ao portonhol) e entendíamo-lo na perfeição, ao contrário da maioria do grupo. Tem duas filhas traquinas de quatro anos que só querem andar às cavalitas dos visitantes e entretiveram-se durante o serão a fazer perfeitas tranças à Maria e um bébé de um. Contou-me, com desgosto evidente nas feições queimadas do sol, que tinha perdido a mulher há menos de um ano e que com a ajuda dos pais tentava criar os filhos.


Não me recordo do nome da mãe do Don Pedro, mas quando me viu a falar com o filho veio perguntar-me de onde era. Expliquei-lhe que era de um país pequenino chamado Portugal, que ficava na Europa junto a Espanha. Ela interrompeu-me, porque sabia onde era o meu país, era o país que tinha uma terra chamada Fátima, onde a virgem Maria tinha aparecido a três pastorinhos. Estarreci. Se durante a minha estadia na América Central 90% dos locais não sabiam onde era Portugal e se inúmeros viajantes (principalmente americanos) tinham uma ignorância abismal sobre o nosso país, como é que uma senhora que não sabia ler, nem escrever, que não tinha uma televisão em casa e que aquecia a água numa fogueira para dar banho às netas sabia onde ficava Portugal e onde era Fátima? Desejou-me felicidades para a minha vida e eu desejei-lhe força, para continuar a criar os netos sem mãe.


As conversas à volta da fogueira duraram até às 9h da noite altura em que nos recolhemos, porque no dia seguinte, e também último, a nossa caminhada começava às 3h da manhã. Adormeci a pensar que, por incrível que possa parecer o dia de hoje não foi, de longe, tão difícil como o de ontem. A dificuldade foi a mesma, as horas também, mas a minha motivação foi diferente. Hoje senti que a mochila já fazia parte de mim, que sem ela faltava algo. Hoje o cheiro da floresta estava mais forte. O meu olhar estava mais nítido e o meu ouvido mais apurado. Hoje cedi ao trekking.


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