segunda-feira, 31 de março de 2014

O diário do meu primeiro Trekking (Dia 3)



13/10/2013

3h da manhã. Já? Fechei os olhos por 2 segundos e quando voltei a abri-los já tinha que acordar. Obviamente que não foi o que aconteceu, mas o meu corpo estava a ressentir-se e a pedir mais horas de sono. Com um olho aberto e outro fechado lá me fui arrastando, a arrumar as minhas coisas vagarosamente e fui a última a pôr os pés a caminho.


A subida foi feita numa estrada de asfalto, sem um único carro e tão negra como o céu. A diferença era que o céu estava salpicado de milhares de estrelas. Impressionava. A última vez que vi um céu tão bonito foi numa ilha no Brasil, chamada Morro de São Paulo, há 10 anos atrás. Tive vontade de me deitar na estrada, contemplar o céu até amanhecer e absorver ao máximo a plenitude daquela imagem. E se estivesse sozinha, era o que teria feito. Mas o objetivo era outro: observar o amanhecer de um mirador sobre o lago Atitlán, a atração natural mais visitada da Guatemala.


Éramos iluminados apenas pelas lanternas dos guias ou de pessoas mais precavidas do que eu. Amarrei-me imediatamente à Maria e à sua lanterna e continuei o caminho. No topo, antes de embrenharmos novamente por trilhas encontramo-nos com a nossa escolta policial. Um segurança muito simpático, mas que evidentemente não compreendia o motivo pelo qual tantos jovens acordavam tão cedo e andavam tantos quilómetros pelo meio da selva e ainda pagavam por isso. Já tínhamos sido informados que esta era a parte menos segura do nosso trekking, daí a escolta ser necessária.


Em conversa com os guias fui advertida em ter cuidado nas trilhas entre as aldeias que rodeiam o lago, por ser uma zona mais turística, também torna os turistas alvos fáceis de pessoas menos bem intencionados.


Seguimos por entre campos de milho, desta vez bem mais assustadores do que os do dia anterior e chegamos a uma clareira com uma vista panorâmica, a 500m de altura, sobre o lago.


Enrolamo-nos nos nossos sacos cama e deitamo-nos na erva fofa mas húmida à espera que o sol acordasse. Os guias preparavam o pequeno almoço com aveia, manteiga de amendoim, e frutos secos e ferviam leite, café ou chá, para aquecer a alma enquanto o sol não o fazia.


A tonalidade do céu foi-se tornando mais clara, num espectro de azuis arroxeados, até que o sol começou a espreitar timidamente atrás dos vulcões que se erguem sobre o lago. O espetáculo foi magnífico e valeu todo o esforço e suor despendido para ali chegar. Prometi a mim mesma valorizar mais estes fenómenos que a natureza nos oferece gratuitamente e sem pedir nada em troca e que tantas vezes não tem espectadores.


Custou-se sair do meu saco cama, mas ainda me custou mais despedir-me deste maravilhoso amanhecer. Continuamos a caminhada final de 3h através da popular trilha “nariz de índio”, que delineia uma montanha recortada com semelhanças assombrosas com a face de um indígena maia em repouso. A trilha é quase sempre a descer com ocasionais miradores sobre o lago e suas povoações, uma imagem que mais parece um postal, principalmente porque abundam flores de várias cores que crescem selvagens e embelezam as fotografias.


Uma vez que baixamos de altitude e já não temos a frescura das florestas nublosas para nos proteger, a temperatura aquece gradualmente, e o sol em vez de morno já queima a pele e obriga a paragens mais frequentes.


A penúltima paragem antes de chegarmos ao destino final é uma cooperativa local de café, a  La Voz Que Clama del Desierto, onde explicam o processamento do café e o experimentamos, seja na forma do italiano expresso, ou americano, latte ou cappuccino.
11h da manhã. Chegamos ao nosso destino: San Juan La Laguna, uma das povoações que crescem nas margens do lago. San Juan é tradicional, é pobre e pouco turístico, ao contrário das irmãs San Pedro ou San Marcos, mas também é provavelmente a vila mais autêntica.


Almoçamos num comedor no centro da aldeia, que pertence a uma cooperativa de tecelagem de mulheres, a Ixoq Ajkeem. Despedidas, beijos e abraços e promessas de trocas de emails eu e a Maria separamo-nos do resto do grupo e seguimos de tuk tuk para San Pedro, o nosso ponto de partida para explorar o lago nos dias seguintes.


Dicas:
-A Quetzaltrekkers fornece estes pacotes por 650Q, que correspondem a aproximadamente 60€. Estão incluídos os guias, o alojamento, 8 refeições, a entrada no temascal, snacks, água, para além de disporem de equipamento, como sapatilhas extra, sacos-cama e colchões que alugam gratuitamente a quem precisar. Este trekking especifica de Xela ao lago Atitlán ocorre duas vezes por semana, aos sábados e terças-feiras. Mas existem muitos outros que podem pesquisar neste link http://www.quetzaltrekkers.com/.
-É importante levar protetor solar e repelente, assim como alguns Quetzals para comprar gelados e café. As lanternas também me fizeram falta, por isso aconselho a que se lembrem delas


domingo, 30 de março de 2014

O diário do meu primeiro Trekking (Dia 2)




12/10/2013

5.00h da manhã. “Maria estás acordada? Preciso de ajuda para me levantar!”. Acordei desorientada, mas o fato de todos os meus músculos latejarem ao menor movimento, trouxe-me de volta à realidade. Não consegui descobrir um centímetro do meu corpo que não me doesse. Colocar a mochila às costas quase me derrubou tal era a dor que tinha nas ancas. Sim, hematomas roxinhos e bem dolorosos. Com bastante dificuldade arrumei as minhas coisas e saí para a pequena praça quase deserta no dia anterior.


Deveria ser dia de mercado porque havia uma concentração anormal de pessoas à volta de quatro bancas. Não me demorei porque estava esfomeada, a precisar de um pequeno-almoço nutritivo para superar outros tantos quilómetros que me esperavam nesse dia. Estava a pensar nisso enquanto me dirigia ao comedouro, termo que designa uma casa local que serve refeições. Não me posso queixar porque o meu pedido foi acedido, mas nunca pensei comer ovos, arroz, feijão preto e tortilhas àquela hora da manhã.


Deixamos a aldeia de Ixtahuacan pouco depois de terminarmos o pequeno-almoço e continuamos a nossa descida pelo vale de Nahua.


Por duas ou três vezes, vislumbramos pequenas casas isoladas, não o suficiente para formar uma aldeia e praticamente inacessíveis no meio de montanhas cultivadas com enormes espigas de milho.


Uma parte do percurso interrompia estes campos e senti-me como as crianças do filme “Querida, encolhi os miúdos”. Espigas de milho com mais de três metros de altura e pedaços de céu azul foram o meu cenário durante uma parte do trilho. Os guias atribuem a altura anormal dos pés de milho a uma técnica maia bastante antiga usada pelos locais (se funciona ou não, não sei, mas gostaria de a experimentar na minha horta) com base na suposta simbiose que ocorre quando se planta junto a este um pé de feijão.




Atingimos a base do vale e descansamos na margem de um rio enquanto nos mentalizávamos para a próxima etapa do nosso trekking. Olhava para a outra margem onde se encontrava a “Record Hill”, a primeira subida deste dia e provavelmente a mais difícil de todo o percurso.


Como o nome indica, os mais corajosos tentam bater o record atual de 9 minutos e 3 segundos. Não tentei cronometrar o meu tempo, fui com calma a apreciar a vista, mas várias pessoas fizeram-no. Como seria de esperar, ninguém conseguiu batê-lo.


Quando cheguei ao topo da colina desejei ter uns pulmões suplentes para o resto do dia. Apesar de ofegante e dorida, consegui apreciar a recompensa. Uma vista que nos faz prolongar o olhar sobre um vale tao verde, apenas pontuado com pequenas casas, um descanso de 20 minutos e a promessa de um gelado um pouco mais à frente deram-me energia para continuar.


Rapidamente chegamos a Xecabol, uma pequena povoação com muitas crianças que gritam, riem e apontam para as pessoas estranhas que carregam mochilas enormes e duas vezes por semana passam por eles.


O dia a dia dos seus habitantes é algo que temos o privilégio de ver de perto. Mulheres que lavam os cabelos em bacias de água fria junto à estrada, crianças  que brincam nas traseiras das casas e homens que trabalham o campo fazem parte da imagem da aldeia.


A única mercearia, para além de refrescos e snacks, também vende gelados por poucos cêntimos, e são os únicos extras não incluídos no trekking. Com menos de 1€ comi dois dos mais caros e maiores.


Atravessamos a aldeia e fizemos um piquenique um pouco mais adiante, antes de penetrarmos pela última vez na floresta, numa íngreme e complicada descida até ao rio Payatza. Esta foi, para mim, a fase mais difícil. Com os músculos a fraquejar, por diversas vezes senti os meus joelhos a ceder ao peso que transportavam, adicionada a força que é necessária para travar o corpo para não irmos simplesmente a rolar até ao rio.
Ladeando as montanhas, para além da vista magnífica da floresta também vemos campos cultivados e simétricos a perder de vista e palmeiras com as folhas mais longas que alguma vez vi.


Chegados ao rio estava na altura de calçarmos o segundo par de sapatilhas porque nas horas seguintes iriamos atravessar a pé sete pequenos riachos. A sensação é maravilhosa: os pés, com feridas e bolhas e muitas dores, em contato com a água gelada e límpida. A vontade é não continuar e ficar de molho no riacho por várias horas. Mas anoitece muito cedo e tínhamos que chegar a casa de Don Pedro, o nosso anfitrião, antes das 18 horas.


5h da tarde. Fui a primeira a chegar a Xiprian, a aldeia onde iriamos pernoitar. Uma vez que a casa de Don Pedro só tinha uma casa de banho, queria tomar o tão desejado banho de água fria antes que anoitecesse, ou de outra forma iria congelar. Então, antes da maioria das pessoas ter recuperado o fôlego já estava eu a sentir-me como nova, com roupa quente e lavada.


O Don Pedro, por uma quantia que desconheço, dá-nos um teto para dormir, sumos de frutas, prepara-nos um delicioso jantar e faz-nos uma fogueira para nos aquecermos enquanto assamos marshmallows. É um senhor simpático e conversador, principalmente quando descobriu que eu e a Maria falávamos a sua língua (a Maria, porque eu mantenho-me fiel ao portonhol) e entendíamo-lo na perfeição, ao contrário da maioria do grupo. Tem duas filhas traquinas de quatro anos que só querem andar às cavalitas dos visitantes e entretiveram-se durante o serão a fazer perfeitas tranças à Maria e um bébé de um. Contou-me, com desgosto evidente nas feições queimadas do sol, que tinha perdido a mulher há menos de um ano e que com a ajuda dos pais tentava criar os filhos.


Não me recordo do nome da mãe do Don Pedro, mas quando me viu a falar com o filho veio perguntar-me de onde era. Expliquei-lhe que era de um país pequenino chamado Portugal, que ficava na Europa junto a Espanha. Ela interrompeu-me, porque sabia onde era o meu país, era o país que tinha uma terra chamada Fátima, onde a virgem Maria tinha aparecido a três pastorinhos. Estarreci. Se durante a minha estadia na América Central 90% dos locais não sabiam onde era Portugal e se inúmeros viajantes (principalmente americanos) tinham uma ignorância abismal sobre o nosso país, como é que uma senhora que não sabia ler, nem escrever, que não tinha uma televisão em casa e que aquecia a água numa fogueira para dar banho às netas sabia onde ficava Portugal e onde era Fátima? Desejou-me felicidades para a minha vida e eu desejei-lhe força, para continuar a criar os netos sem mãe.


As conversas à volta da fogueira duraram até às 9h da noite altura em que nos recolhemos, porque no dia seguinte, e também último, a nossa caminhada começava às 3h da manhã. Adormeci a pensar que, por incrível que possa parecer o dia de hoje não foi, de longe, tão difícil como o de ontem. A dificuldade foi a mesma, as horas também, mas a minha motivação foi diferente. Hoje senti que a mochila já fazia parte de mim, que sem ela faltava algo. Hoje o cheiro da floresta estava mais forte. O meu olhar estava mais nítido e o meu ouvido mais apurado. Hoje cedi ao trekking.


domingo, 23 de março de 2014

O diário do meu primeiro Trekking (Dia 1)



11/10/2013

Hoje fiz o meu primeiro trekking. Talvez uns lhe chamem loucura, outros coragem, mas é necessário um pouco dos dois para percorrer a pé 40km em dois dias e meio, pelas montanhas e florestas do interior da Guatemala.



A nossa aventura começou em Xela, ou Quetzaltenango, a segunda maior cidade do país. Com um centro colonial muito europeu, tudo o resto, no entanto, assumiu um estilo guatemalteco. Gostava de ter conhecido um pouco melhor a cidade, mas tanto eu como a Maria estávamos exaustas. A noitada anterior em Antígua, e a viagem de 5 horas num chicken bus desumanamente cheio, contribuíram para que fossem necessárias algumas horas até o meu corpo se recompor. Para além disso, iniciantes nestas caminhadas tiramos o resto do dia para nos mentalizarmos do que nos esperava no dia seguinte.


6:30h da manhã. Já todos (e com todos refiro-me a um grupo de 20 a 30 em número e idades, maioritariamente europeus, mas também alguns americanos, canadianos e australianos) nos encontrávamos na Casa Argentina, o ponto de encontro da Quetzeltrekkers. Esta é provavelmente a maior agência de trekking do país e organiza diversas expedições na região. Foi fundada em 1995 por voluntários estrangeiros e locais, com o objectivo de reverter os benefícios do aumento do turismo na cidade em favor do enorme número de crianças que viviam nas suas ruas. Felizmente, tem vindo a crescer nos últimos anos, o que lhes permite, neste momento, auxiliar mais de 200 crianças. Eramos esperados por cinco voluntários, que foram também os guias e cozinheiros dos dias seguintes.


Depois de uma caminhada de 20 minutos e outros 20 de chicken bus chegamos ao nosso destino. Xecam é uma pequena aldeia com meia dúzia de casas que foi o ponto de partida do primeiro dos longos 20km que nos esperavam pela frente nesse dia.


A subida do Vale de Xela é extremamente íngreme, dura um par de horas, não tem qualquer tipo de apoios e é feita por trilhas que desbravam a selva. Quando, por vezes, as árvores se tornam menos densas obtêm-se vistas magníficas do vale e da cidade.


Tenho que confessar que só as apreciei devidamente no dia seguinte, quando as vi através do olhar da minha máquina fotográfica. Porquê? Bem, para além da subida extenuante que estava a enfrentar, também lutava contra a minha mochila que continha as minhas coisas pessoais, saco cama e colchão, uma enorme panela para o almoço e 4litros de água, puxando-me insistentemente para trás. Duvidei várias vezes se fui feita para estas aventuras e secretamente desejei nunca ter dado ouvidos ao meu amigo israelita que me incentivou a ir.


Mas, como referido pelos guias, no dia anterior durante o briefing, quem sobreviver às primeiras duas horas, também sobrevive aos dias que se seguem. Algo que repeti inúmeras vezes para mim mesma durante as referidas horas.
Saímos da floresta, para um planalto de erva alta e seca, onde atingimos o ponto mais alto da nossa caminhada, a cerca de 3050m de altitude, no topo do vale. Este é conhecido pelas povoações locais como Alaska.


O resto do dia foi quase todo passado a percorrer uma floresta nublosa, por trilhos estreitos, por vezes tão engolidos pelos ramos que tinha que esperar por um dos voluntários para saber qual o caminho a seguir.


Foi a minha primeira vez numa floresta deste tipo. O silêncio é esmagador. A neblina cobre as árvores e envolve-nos sorrateiramente, pairando à nossa volta. A palavra que melhor a descreve é misteriosa.


Estes trilhos não são apenas utilizados por nós. Homens de idade com as suas mulas, mulheres com filhos pelas mãos, cabras e crianças que carregam mais quilos de lenha às costas do que o próprio peso.


Pedi a quatro meninos por quem passei, que deveriam ter menos de 10 anos, para fotografá-los. Deitaram-me um olhar assustado e depois um sorriso tímido perante a máquina. Estavam mais carregados do que eu. Senti-me envergonhada por me ter queixado tanto durante a caminhada.


De vez em quando, o sol aparecia, limpando a neblina. Quando coincidiu com uma abertura nas árvores estaquei. Estava perante uma imagem maravilhosa. No topo das montanhas, uma imensidão de verde a perder de vista, com profundos vales, e uma sensação de paz indiscritível.


Almoçamos numa clareira, no meio da floresta, suficientemente grande para todos se poderem sentar. Todos carregávamos, mais ou menos equitativamente (bem, a minha panela era mais pesada do que tudo o resto!), o necessário para os guias nos prepararem um almoço bastante melhor do que o que esperava.



Com a barriga bem mais aconchegada e uma vontade enorme de dormir, continuamos a nossa descida até alcançarmos uma estrada enlameada que abraça um dos lados do vale que percorremos nas restantes horas.




5h da tarde. Chegamos finalmente a  Santa Catalina Ixtahuacan, depois de 11h de caminho, lágrimas nos olhos, cansada, mas vencedora.


A aldeia tem uma pequena praça com duas mercearias e uma escola onde iriamos pernoitar. A desejar como nunca um banho quente e uma cama confortável olhei desoladamente para o meu saco-cama.


Enquanto os guias preparavam bebidas quentes e o jantar, fomos, em grupos de 3 de cada vez, para o temascal de uma família local. O temascal é uma espécie de sauna, um compartimento em pedra utilizado pelos indígenas para purificar os corpos através de vapores quentes. O nosso tinha água fria para misturarmos com a que fervia para nos podermos lavar. Foi a sauna mais estranha em que já estive, mas soube-me maravilhosamente bem.


Às 19h já dormia profundamente no meu saco-cama.