Enormes olhos negros encaram-me. São simpáticos, doces até. Mas
têm algo de enigmático. São diferentes dos elefantes domesticados com que me
cruzei até agora. Talvez seja a sombra de liberdade que ali espreita. Talvez…
As orelhas desmesuradamente grandes movem-se com desenvoltura. Enxotam as
persistentes moscas que insistem em não desaparecer. Ao nosso lado, um grupo de
10 elementos come pachorrentamente. De bebés com poucos meses, às matriarcas
que comandam a manada. Um ou outro mais curioso, aproximam-se do jeep, mas
rapidamente nos ignoram, provavelmente habituados à nossa humana.
Os pequeninos e desengonçados “dumbos”, deslocam-se com a mãe para todo o
lado. Até os pequenos passos que dão, fazem-no sincronizados com os da
progenitora, numa estranha dança que sacode os seus enormes traseiros. Esta
imagem ternurenta é interrompida pelo ribombar de um trovão. O som assusta uma
das mães, que, assumindo-nos culpados, investe contra nós. O nosso motorista revela-se habilidoso. Ainda nos estamos a aperceber da reação da progenitora, já
ele se desloca a toda a velocidade em marcha atrás. Respiramos de alívio quando
o elefante abranda após uma corrida de algumas dezenas de metros. O episódio
aguça-nos os sentidos, e, com a recente descarga de adrenalina, prosseguimos o
nosso safari, alerta.
Estamos no Udawalawe National Park, um dos parques de vida selvagens mais
famosos do país. Apesar disso, só encontramos 2 jeeps durante as 3h que o
percorremos. Elefante, esses, vimos mais de uma centena.
Estima-se que existam 3000 elefantes selvagens no Sri Lanka, 500 dos quais
vivem neste parque nacional. Assumem uma estatura inferior aos primos
africanos, mas têm o porte bonacheirão típico destes animais. Apenas 10% da
espécie tem presas de marfim, e talvez por isso, ou talvez pelo caráter
pacifista dos budistas, não sejam alvos da caça furtiva.
Os elefantes desempenham um papel protagonista na história e cultura do Sri
Lanka. Foram domesticados durante milénios para os mais diversos ofícios. Os
domésticos são os mais comuns. Mas não os únicos. Há um trabalho, com uma
rigorosa seleção que eleva o estatuto do elefante. Venera-o até. Transportar a relíquia
do dente de Buda durante o cortejo no festival Esala Perahela em Kandy. Nessa
cidade, durante uma visita ao templo do dente, pude admirar o porte majestoso de Raja, um dos elefantes mais venerados da Ásia, que transportou a relíquia do
dente durante 37 anos e participou no festival 50. Após a sua morte foi
embalsamado e encontra-se em exposição.
Os elefantes são os protagonistas, mas não são as únicas personagens que
habitam estes hectares. Crocodilos e búfalos, para meu espanto, nadam
pacificamente lado a lado. Pavões de cores garridas contrastam com o verde
luxuriante e aves endémicas rasam os lagos.
Quando o safari chega a meio, paramos junto a um enorme lago. Só aqui nos é
permitido sair do jeep. Já se aproxima o pôr do sol, pintando a paisagem de um
tom alaranjado. Estamos sozinhos, rodeados de majestosas criaturas, em comunhão
com a natureza, no seu habitat natural. A sombra de liberdade que lhes adivinhei, também hoje passou pelos meus olhos.